Não basta observar leis para ser justo; é preciso observá-las com o coração, consciente daquilo que se está fazendo, a fim de realizar o bem que a lei visa. Isso se chama agir conforme o espírito da lei. Observar as leis de Deus conforme o espírito de Deus. A letra da lei mata, o Espírito vivifica.
Os antigos israelitas veneravam a Lei como uma encarnação da sabedoria e do Espírito de Deus. O salmo responsorial de hoje 119(118) é um bom exemplo. A Lei era uma luz, um caminho, uma razão de orgulho perante os outros povos (cf. Dt 4,7-8). “Feliz o homem … que na lei do Senhor vai progredindo! Feliz o homem que observa seus preceitos e de todo coração procura a Deus!… Ensinai-me a viver vossos preceitos. Quero guardá-los até o fim! Dai-me o saber e cumprirei vossa lei de todo coração a guardarei!”
Mas pode-se observar a lei com outro espírito. Havia quem observasse com espírito de barganha: “vamos fazer exatamente o que está escrito, nem mais nem menos; então, seremos justos e Deus nos deverá conceder o paraíso!” Certos escribas e fariseus faziam da Lei instrumento de dominação (Mt 23,2-4). Jesus quer tirar a Lei das mãos dessa gente e devolvê-la às mãos de Deus, para voltar a ser expressão da vontade de Deus, de seu amor, de sua fidelidade (1ª. leitura).
Jesus não era contra a lei. Era contra a interpretação que se dava à Lei. Com o termo “ouvistes” Jesus contrapõe seu ensinamento ao dos escribas e fariseus. A novidade de Jesus está na explicitação da intenção de Deus ao dar os mandamen-tos. Por exemplo, não basta ‘não matar’. Há que evitar palavras de desamor, de desprezo, de ressentimento contra o próximo. Era essa a intenção de Deus e é esse o espírito da lei que permanece. Jesus quer restabelecer a lei na sua pureza original (=da fonte divina). Não quer abolir, mas levá-la à perfeição: não o legalismo farisaico, mas o Espírito de Deus (Mt 5,17-20).
Restituir a lei a Deus, devolver a lei a Deus significa uma profunda conversão da nossa “justiça” (cf.Mt 5,20). Significa que, enquanto nossa justiça vier de nós mesmos, nunca será suficiente para observar a Lei. Pois segundo o espírito e a intenção do legislador (Deus), ninguém jamais conseguirá realizar tudo o que Deus quis sugerir com a lei.
“Não matarás”, cita Jesus, mas também não sufocarás o próximo por desprezo, rixa, vingança. “Não adulterarás” (5,27), mas também não alimentarás cobiça por mulher alheia no teu coração. O divórcio (mais exatamente o repudio da esposa) entrou na lei de Moisés, mas não era da intenção de Deus (cf. Mt 19,1ss). Conforme o espírito de Deus não deve haver divórcio; mesmo se for julgado um mal menor … nunca será um bem! “Jurar” é - e sempre será - uma aberração, pois Deus quer que sempre se diga a verdade: então, por que jurar? (Mt 5,33-37).
Com sua radicalidade de interpretação da Lei, Jesus derruba toda auto-suficiência. Diante de Deus ninguém é “sem pecado” (Sl 129,3). Mas isso não nos dispensa de fazer o melhor. Os fariseus reduziam a lei a moldes humanos e estreitos. Jesus mostra a dimensão infinita e inesgotável da vontade de Deus, da qual os mandamentos são uma fraca demonstração. Nunca estaremos “quites” com Deus; sempre estaremos devendo-lhe alguma (ou muitas) coisa. Mas fazendo tudo aquilo de que somos capazes, fazendo com consciência e em verdade, podemos contar com sua graça, pois ele é nosso Pai.
A sabedoria do Primeiro Testamento ensina que temos uma consciência para escolher entre o bem e o mal. Para ajudar-nos a escolher, Deus nos propõe a lei, os mandamentos. São sinais da vontade, da expectativa, do desígnio, do espírito do Pai. É preciso aprender a escutar Deus nos sinais da letra dos mandamentos É o que Deus deseja, é o seu projeto, é o seu plano de amor, é a busca da verdadeira justiça do evangelho.
Jesus restituiu a Lei a Deus: tirou-a das mãos dos fundamentalistas e a fez ser novamente interpretação e instrumento do amor do Pai. E com isso, restituiu-a ao povo, pois assim ela serve para a paz, a felicidade profunda do povo que Deus ama. A nós cabe interpretar a lei pelo amor que Cristo nos fez conhece: a lei a serviço de um amor inesgotável. Então, nunca estaremos plenamente satisfeitos, pois sempre descobriremos uma maneira nova e melhor de realizar o bem que Deus nos aponta pela lei.
E ainda. Por mais completos que formos no cumprimento dos mandamentos, sempre haverá um espaço (enorme) para que a gratuidade e a misericórdia de Deus se manifestem. A Lei não esgota o mistério de Deus e seus desígnios para quem ele ama e que busca corresponder a esse amor.
Paulo abre uma perspectiva interessante do que é fundamental na vida: a busca sincera e a vivência do amor na corresponsabilidade de uns com os outros, sempre em busca do bem, da felicidade e da plena realização do ser humano, filho de Deus. Há coisas que “os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu. Isso Deus preparou para aqueles que o amam”.
Nossa celebração de hoje inquire-nos: “deixa tua oferenda diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão”(v.23-24). É a grande descoberta da estreita relação que existe entre o culto prestado a Deus na vida e o culto prestado na ce-lebração: a vida é expressão da celebração e a celebração é expressão da vida. Celebramos o que vivemos e vivemos o que celebramos! É preciso harmonizar vida com celebração, de tal forma que uma coisa ilumine a outra. Gestos, símbolos, ritos, preces e orações tornam-se opacos se não transparecem uma vida que os convalida. Celebrar todos os domingos na Igreja significa viver todos os dias segundo o Evangelho de Jesus Cristo morto e ressuscitado.
Paulo fala de Jesus Cristo crucificado, sabedoria de Deus, misteriosa e oculta. Na fragilidade de sua vida humana totalmente ofertada ao Pai, como dom de amor, Jesus desvenda aquilo que Deus “preparou desde toda a eternidade” para os seres humanos: o amor ao extremo.
A proposta de Jesus é exigente, porque mira o interior do ser humano, no qual foi escrita a vontade de Deus, a consciência. Deus não quer escravos, mas filhos livres. Calha bem a frase de Santo Agostinho: “ama e faze o que quiseres” porque traduz muito bem o maior mandamento: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo” (Mt 22,37-39).
Fonte: celebrando.org.br
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